quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Nada inocentes


Texto escrito para a 2ª edição da Revista Rocinante em setembro de 2016



Agnus Dei (2016), como o próprio título no Brasil sugere (do latim, cordeiro de Deus), é um filme que adentra o universo da religião católica para mostrar um fato real — aparentemente absurdo, do período imediato ao fim da Segunda Grande Guerra — no qual freiras polonesas grávidas recebem ajuda, em segredo, de Mathilde Beaulieu (Lou de Laâge), uma médica francesa.

Mathilde é ateia, comunista e seu único interesse ao se envolver com as irmãs do convento é salvar vidas. Com o tempo, porém, passa a entender a visão de mundo delas e a respeitar suas dificuldades, medos e culpa em relação ao corpo e ao pecado. No primeiro plano há uma apresentação de uma comunidade de mulheres entoando um canto gregoriano. Mathilde de certo modo, apesar das diferenças ideológicas, faz parte dessa irmandade, pois também é mulher. O filme tem êxito ao construir esse sentimento de comunidade, principalmente por apresentar uma diversidade grande de personagens femininas, caracterizadas de modo complexo, independente de uma visão reduzida e tipicamente masculina da mulher.

A inadequação de uma mulher em uma sociedade retrógrada e machista e sua luta para expandir seus direitos e papéis, já tinham sido abordadas no filme anterior da diretora Anne Fontaine, Coco Antes de Chanel (2009). Em Agnus Dei, Mathilde (cuja origem do nome é “guerreira forte”) é essa figura histórica e central para a narrativa. Entretanto, o aprofundamento nas personalidades de algumas das freiras, em especial Maria (Agata Buzek), Mère Abesse (Agata Kulesza) e Irene (Joanna Kulig), faz do filme quase um tratado sobre a diversidade feminina e a desconstrução de estereótipos desse gênero. Irene, por exemplo, mesmo sendo uma personagem coadjuvante, se diferencia das outras freiras por não se opor ao toque em seu corpo. Além disso, no final do filme, ela deixa seu filho e segue no carro com Mathilde para ter uma vida independente. Em contrapartida, a irmã Anna (Katarzyna Dabrowska) segue sua vocação de outra maneira ao acolher seu próprio filho.

Apesar de se enquadrar dentro de uma temática recorrentemente contemplada pela diretora, Agnus Dei parece estar mais voltado para uma classificação a partir dos gêneros cinematográficos em contraste a um sistema de autor. Essa categorização, apesar de nunca ser precisa, é um ponto chave no filme, pois são utilizadas majoritariamente convenções do gênero dramático para narrar a história. Antes mesmo de o filme iniciar, aparecem os habituais dizeres “Esta história é baseada em fatos reais”, já preparando o espectador para aquilo que define o gênero “drama”: filme de temática séria, focado na trama, com retratos realísticos de personagens, cenários e situações da vida e de histórias envolvendo desenvolvimento profundo de personagens e de suas relações.



Aspectos formais reforçam a construção do ambiente dramático. Movimentos de câmera lentos ao longo do filme passam um ar sereno, condizente com a narrativa. Por sua vez, a mise-en-scène é austera e calculada, criando uma aparência pitoresca, o que marca também a fotografia e remete à pintura renascentista, com sua iluminação e perspectiva rigorosa que permite um tratamento realista do espaço e da luz. Outro elemento pertinente é o cenário inóspito de inverno e o uso predominante das cores azul escuro e cinza. Todos esses aspectos estão sintonizados com a trama e acompanham o arco da história até seu clímax.

Na resolução do filme, diante da superação dos obstáculos, esses elementos formais se transformam e se adequam. Assim, o inverno dá espaço à primavera, com luzes mais claras e uma paleta de cor mais viva, aparecendo o azul claro e o verde — cores que estão ligadas à serenidade e à esperança, em oposição aos tons escuros anteriores, ligados mais à tristeza e à morte. Além disso, o convento é alegremente ocupado por crianças e visitantes, ramos estão espalhados por todos os cantos e as freiras usam guirlandas na cabeça. Esse tipo de transformação da forma, para reforçar essa mudança no arco narrativo, é convencional e cheia de clichês, mas é eficiente em alcançar uma resposta emotiva do espectador comum.

O som, por sua vez, se restringe, quase que exclusivamente, ao universo narrativo, o que facilita o mergulho na história e traz ao filme um tom realístico e sério. O uso do silêncio combina com o ambiente do convento e, intercalado com os cantos gregorianos, produz uma dimensão contemplativa. Entretanto, há situações em que o uso do silêncio e de detalhes de sons do ambiente (como o de passos) geram um pequeno clima de suspense e, seguidos de gritos e gemidos, geram um contraste chocante. O único momento em que o som não-diegético é usado é na parte final, sem mais a preocupação de atrair o espectador para dentro da história, na qual uma música começa a tocar quando Mathilde e Irene vão embora de carro e o som permanece ao longo das próximas cenas até o letreiro subir. Além dessa trilha, que enfatiza a superação e felicidade das cenas finais, há o uso de voice over de Maria, como se Mathilde estivesse lendo uma carta dela. Esse recurso geralmente é um “tapa buraco” usado para explicar algo que não ficou claro ou não foi mostrado. Entretanto, nesse caso, o sentimento da cena é reforçado a partir das palavras poéticas e emocionais e o filme é finalizado de modo mais impactante, apesar do uso frequente desse recurso.

O que chama atenção, porém, é como, diante desse clima dramático, elementos de romance e comédia são utilizados ao longo da trama, causando uma quebra e alívio da tensão gerada. Samuel (Vincent Macaigne), o médico francês que acompanha a personagem principal, é um personagem que converge esses elementos, distanciando o espectador da trama central e gerando um alívio da tensão dramática. Os elementos do gênero romance, em especial o do cortejo, são usados na relação das personagens Mathilde e Samuel, mas são secundários na trama e pouco ajudam no seu desenvolvimento (apesar de ajudarem na construção da personalidade de Mathilde, mostrando sua atitude e pensamento independentes da figura masculina). Em relação aos elementos ligados ao gênero da comédia o mesmo ocorre; entretanto, nesse caso, gera ainda um estranhamento, pois não há construções que preparem o espectador para esse tipo de situação. Por exemplo, quando Samuel está no convento para ajudar nos partos ele faz uma piada dizendo que nunca imaginaria que estaria ajudando no parto de freiras polonesas. Porém, por ser, a comédia, reiterada exclusivamente na figura de Samuel, isso acaba sendo aceito, pois caso contrário, se estivesse espalhado em várias personagens ou situações ao longo da narrativa, causaria ainda maior estranhamento e diminuiria o interesse do espectador por não se encaixar com o clima dramático criado.



Para além das temáticas da mulher e da religião, há uma outra mais sutil, ainda que bastante presente e relevante: o do nacionalismo francês. Já no início, quando a irmã Teresa (Eliza Rycembel) vai em busca de ajuda e pede informações para as crianças, ela deixa claro que não pode ser uma ajuda polonesa ou russa. Assim, quando encontra a cruz vermelha francesa, isso coloca a França, que passa a ser representada por Mathilde, em uma posição especial, pois é a única que pode ajudar. A benevolência de Mathilde é indissociável de uma postura supostamente francesa. Não é à toa que os homens franceses parecem elencar virtudes como liderança, compaixão, humor e bondade, enquanto os demais homens (que são militares russos) são cruéis, violentos, autoritários e aparentemente menos instruídos. Além disso, Mathilde tem uma postura moralista e intrometida na relação com as irmãs, influenciando diretamente a direção e as escolhas do convento. Em certo ponto, a irmã Maria diz cumprir um dever de obediência ao reportar o nascimento de um dos bebês; Mathilde, por sua vez, responde: “você tem um dever maior, que é de proteger a vida desta criança”. Claro que essa posição de Mathilde, mais impositiva e moralista, é discreta e passa desapercebida pela maioria, sendo mais evidente sua posição de aceitação, compaixão, abertura e diálogo com essa outra cultura.

Extrapolando os aspectos do filme, parece evidente que há uma preocupação da França em passar esse tipo de imagem do seu país. Não por acaso, esse filme foi escolhido para representar o cinema francês no festival Varilux (no catálogo do festival, a curadoria aponta uma preocupação explícita sobre a construção da imagem da França no Brasil). Nesse sentido, parece que o cinema francês, apesar de se diferenciar em vários sentidos do cinema popular norte-americano, acaba encontrando um ponto em comum: o de exercer uma propaganda nacionalista discreta e sutil, porém muito poderosa, através de seus filmes. Não se pode afirmar que esse tipo de propaganda interfira na construção e produção do filme como acontece muitas vezes nos Estados Unidos desde sua era clássica, mas fica evidente que o governo e os responsáveis franceses acabam exercendo a mesma função nacionalista ao selecionar esse tipo de filme para representá-los diante do mundo.

terça-feira, 16 de agosto de 2016

Kaufman en Abyme

Texto escrito para a Revista Rocinante em junho de 2016

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Anomalisa (2015) é uma animação em stop motion de temática adulta, algo raro de se ver nos cinemas, mesmo já sendo conhecido e trabalhado na televisão no canal Adult Swim (contudo, em Adult Swin a temática adulta é centrada na sátira, já em Anomalisa é centrada no drama, característica que torna o filme ainda mais raro e original). A animação foi adaptada de uma peça homônima escrita por Charles Kaufman sob o pseudônimo de Francis Fregoli, no qual o personagem principal é Michael Stone: um homem de meia idade, casado, pai de um filho e palestrante renomado no universo do atendimento ao cliente e da comunicação. Stone, apesar do seu trabalho motivacional, é solitário, deprimido e, logo percebe-se, vive em um estado de crise, escutando todos os outros como se fossem uma só pessoa (fenômeno conhecido no mundo da psiquiatria como síndrome de Fregoli, referenciada no pseudônimo de Kaufman e no nome do hotel em que Michael fica hospedado). Essa única voz, ouvida por Michael Stone, é dublada pelo ator Tom Noonan, o mesmo intérprete do personagem Sammy em Synechodoque, New York (2008), que passa a viver a vida do personagem principal Caden. Ambos os casos são típicos de uma vivência de perseguição paranoica e o interessante é que essa perseguição pode estar ligada, de algum modo, à figura de Kaufman, especialmente se pensarmos seus personagens, Caden e Michael, como seus alteregos.

Kaufman, além de ser o roteirista, divide a direção com um experiente profissional de animação, Duke Johnson, enquanto para Kaufman essa técnica é uma novidade. Além disso, com um diretor parceiro ele parece usar uma linguagem mais clara e centrada para expressar suas ideias, pois Synecdoche NY, seu único esforço diretorial solo, é atravessado por uma certa inconsistência de tom. Há cenas em Synecdoche, por exemplo, em que o espectador tem dificuldades de compreender se o tom é cômico ou dramático diante de situações absurdas, mesmo se essa ambiguidade do tom tenha sido planejada, pois, de todo modo, parece fornecer uma experiência vazia. Essas situações não ocorrem em outros filmes de Kaufman e, em Anomalisa, o tom dramático é centrado (apesar de ser atípico, com algumas pitadas de sarcasmo e comicidade) e, assim, adquire maior força emocional para sua narrativa.

Um dos principais elementos de Anomalisa é o diálogo. As conversas, em sua maioria, são formais e superficiais, mas, ao mesmo tempo, causam certo incômodo e ansiedade tanto entre os personagens quanto no espectador. Os diálogos, sempre realistas na medida em que a ficção permite, são apenas a ponta do iceberg, pois escondem um subtexto rico e profundo percebido através do modo como são falados e de suas pausas. Quando, por exemplo, Stone diz secamente ao funcionário do hotel que o vôo não havia sido turbulento, mas, em seguida, no telefone com sua mulher, fala o contrário, mostra-se sutilmente, a partir dos diálogos, a preferência de Stone por mentir para não conversar com um estranho. Além disso, mesmo com sua mulher, Stone tem um diálogo direto e, em pequenos detalhes, pode-se perceber uma ansiedade e desconexão entre os dois, como quando ela o interrompe para chamar o filho (que, aliás, é também objetivo na sua fala).

Após essa conversa, Michael liga para sua antiga amante, Bella Amorosi, e marca um encontro, como se pudesse resolver seus problemas apertando um botão, semelhante aos do seu quarto de hotel, com símbolos diversos para facilitar o consumo do serviço de quarto. Michael tem um encontro desastroso com Bella e, em seguida, conhece Lisa e se apaixona, pois ela é a única pessoa que tem voz diferente dos demais. Depois de uma cena de sexo sensível, mais realista do que muitas em live action, Michael a pede em casamento durante o café da manhã no dia posterior. Após o pedido, contundo, em uma conversa banal, Michael se irrita com alguns comportamentos de Lisa e os dois passam a se comportar como se já vivessem uma vida monótona de casados. Nesse momento, ele passa a ouvi-la exatamente como a todos os demais e isso é o suficiente para desestabilizá-lo e fazê-lo voltar ao ponto inicial. Michael então regressa para casa aceitando sua condição solitária e doentia, trazendo consigo um presente pouco usual para seu filho: uma antiga boneca japonesa. Presente mais interessante para Michael, pois consolida sua experiência frustrada em um objeto, lembrando-o sempre desse desencontro amoroso e de sua busca problemática por uma mulher idealizada. A música da trilha sonora “None of them are you” (Nenhum deles é você), escrita por Kaufman e cantada por Tom Noonan (como o próprio filme funciona, escrito por Kaufman e dublado por Noonan), enfatiza o ponto do protagonista não encontrar esse amor. No final das contas, talvez seja esse o aprendizado de Michael: o amor romântico não irá salvá-lo.

Anomalisa 2

Anomalisa tem um trabalho sonoro excepcional, que em si deslumbra e movimenta a narrativa de modo autônomo, talvez devido ao fato da peça de teatro ter sido composta para ser sobretudo auditiva (pois Kaufman a escreveu para o Theatre of New Ears, em que a narrativa estava toda centrada na leitura dos diálogos e na trilha sonora). O filme todo pode ser compreendido e pode-se ter uma experiência quase completa apenas ouvindo-o; porém, a imagem não é vazia e traz em si aspectos importantes.

A escolha pela animação parece refletir uma crítica à artificialidade das relações humanas e da vida, ainda mais considerando os vínculos artificiais dos personagens entre si e o fato de eles usarem máscaras. Outro aspecto intrigante da imagem é a referência ao filme My man Godfrey (1936), que, quando Michael liga a televisão no hotel, está passando (também encenado por bonecos e dublado por Tom Noonan). Esse filme, uma comédia romântica hollywoodiana do período após a grande depressão americana, faz parte de um grupo de filmes considerados escapistas e é uma experiência diametralmente oposta à Anomalisa, pois enquanto aquele fazia o espectador esquecer sua realidade dura e desesperançosa, este puxa o espectador para tal realidade. Esses aspectos acabam por deslocar a realidade ficcional e tornam a imagem complexa e profunda, pois, de certo modo, atuam como um mise en abyme (efeito de ter dentro da imagem a própria imagem em escala menor repetidas vezes).

De fato, o efeito de mise en abyme é uma marca registrada nos roteiros de Kaufman, sendo utilizado nas formas de metalinguagem e metáfora de diversas maneiras, como nos filmes Quero ser John Malcovich (1999), Adaptação (2002), Brilho eterno de uma mente sem lembranças (2004) e em Synecdoche, New York (2008), o qual ele também dirige. Esse efeito pode representar um esforço dos seus personagens de olharem para si mesmos de fora e tentarem se entender e, em última instância, serem autosuficentes. Escrevendo sobre si mesmos (Adaptação), atuando sobre si mesmos (Quero ser John Malcovich), lembrando sobre si mesmos (Brilho eterno…) ou dirigindo a si mesmos (Synecdoche). Porém, a tentativa dos personagens de voltarem a si é um sintoma narcísico, um egocentrismo exagerado que causa confusão, distorção da realidade e isolamento (características comuns nas histórias de Kaufman), em vez de os tornarem autosuficientes. Condição que, ao chegar no limite, precisa ser superada; entretanto, como superar esse egocentrismo? Essa é uma pergunta não respondida nos filmes citados, pois de fato o egocentrismo não é analisado diretamente, já que não faz parte do conflito das personagens, mas sim, é uma característica delas. Em Anomalisa, Michael é esse típico personagem narcísico e seu conflito não está ligado diretamente a isso. Entretanto, diferentemente de nas outras histórias citadas, Michael não resolve seu problema (seja ele qual for). Além do mais, parece reconhecer e aceitar sua condição egocentrada, mudança significativa na estrutura e no arco dramático das personagens, quando comparados aos representados nos demais filmes do autor.

Assim como Michael Stone, os filmes de Kaufman parecem sofrer da síndrome de Fregoli — esse nome, aliás, se origina do ator e dramaturgo italiano Leopoldo Fregoli, que se destacou no século XIX por interpretar vários papéis na mesma peça — e, consequentemente, podem ser interpretados como variações dramáticas do mesmo tema: o indivíduo moderno autocentrado. Desse modo, o que pode ser considerado o centro de suas histórias é o próprio Kaufman, chamando atenção para si através da sua forma e estrutura narrativa. Estrutura que é elaborada e original, mas parece um invólucro bonito para um presente ordinário na história do cinema, já que, uma vez desvendados sua técnica e seus truques narrativos, resta muito pouco para se apreciar. Isso não tira o mérito de seus filmes, mas, ao esconder o conteúdo em camadas racionais e elaboradas, Kaufman acaba se escondendo dentro dessa mise en abyme sem fim. Porém, sobretudo em Anomalisa, ele indica um processo de mudança ao colocar a história no centro, sem rebuscar a forma de modo despropositado, fazendo com que sua expertise da técnica narrativa tenha um lugar mais propício para apreciação, debates e reflexões.

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Rosetta (1999, Jean-Pierre e Luc Dardenne, Bélgica)


A câmera persegue Rosetta. O Chefe persegue Rosetta. Os guardas perseguem Rosetta. Ela luta e resiste, mas ela nada pode contra esse pequeno representante do sistema, pois ela é ainda mais insignificante. Rosetta parece ser uma história que não quer ser contada. Sempre foge e fecha as portas de quem tenta se aproximar, até mesmo a câmera. Essa é apenas um narrador mudo que busca mostrar sem dizer, sem decupar, sem simbolizar. Assim o filme segue o ritmo que sua personagem lhe impõe. Uma ansiedade e uma tensão terríveis, quase sem fôlego, que a montagem ajuda a reiterar, mas que vemos principalmente no ato de filmar como reações (ou perseguições?) às ações de Rosetta.

Morando em um acampamento de trailers com a mãe, Rosetta está afastada do convívio social. O trabalho é seu único modo de interagir socialmente e construir relações. Sua relação com a mãe é completamente invertida, sendo ela a cuidadora e a responsável. Essa confusão de papéis se mostra também como uma confusão de identidade, por exemplo, quando ela fala pra si mesma na cama “Seu nome é Rosetta. Meu nome é Rosetta. Você encontrou um trabalho. Eu encontrei um trabalho. Você tem um amigo. Eu tenho um amigo. Você tem uma vida normal. Eu tenho uma vida normal. Você não cairá na rotina. Eu não cairei na rotina”. Essa fala mostra essa relação confusa que ela tem consigo mesmo, também essa solidão e acima de tudo suas mais íntimas preocupações.

Rosetta além de ser perseguida também persegue, e não só um emprego e a própria mãe, mas aos poucos vemos que ela também busca a si mesmo, um amigo, uma vida normal e não cair na rotina (como ela mesma aponta). Presa na lama sozinha, ela descobre que não tem ninguém para ajudá-la, mas ela pode ajudar. Ela salva Riquet em situação similar a que esteve e não foi ajudada pela mãe e é esse o ponto de virada. Dessa mudança ela descobre sua força, a possibilidade de não ficar a mercê da situação e fazer diferente daquilo que parece estar “imposto” a ela. Dentro dessa mudança vemos as ações seguintes, a denuncia de Riquet e a posse de seu cargo, possibilitando uma construção de sua identidade.

Quando a mãe retorna a filha parece não ser mais a mesma. Ela põe um ovo para cozinhar e enquanto ele cozinha, ela sai, liga pro chefe e pede demissão. O ovo está cozido e ela o come. Rosetta parece finalmente ceder e “engolir” a simbologia de ser filha. Só a partir daí ela consegue se sentir vulnerável e desprotegida, para então ser ajudada por Riquet.

Como ultima observação, queria apenas enfatizar a excelente atuação Emilie Dequenne, que fez viver Rosetta. Outra atriz teria interpretado bem o papel, mas Dequenne de fato o viveu. Os irmãos Dardenne enxugaram a linguagem cinematográfica, subtraindo seus elementos, para dar mais força a história que queriam mostrar e assim enriqueceram o cinema.

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Deserto Azul (Eder Santos, 2014, Brasil)



Da vídeo arte para o cinema narrativo, deserto azul parece estar na transição desses dois caminhos. Diante de uma proposta de se fazer um diálogo, ante de tudo, com a juventude, o filme parece se adentrar em uma realidade “paisagística”, onde seus objetos futurísticos tem suas funções definidas e parecem chegar a dificultar as relações humanas. Esses objetos são antes de tudo cenários ou então obstáculos de uma “humanidade”. A busca que o protagonista traça não fazem um vínculo direto com a tecnologia, nem sequer a negando, mas simplesmente se alienando a ela. Em outras palavras, a usando e a entendendo apenas como algo dado, completo, e não algo incompleto que precisa de uma interação subjetiva para existir ou ter sentido.

Diante disso, o aspecto futurista do filme talvez não seja essencial. A questão que o filme parece sim trazer é sobre como os jovens de hoje se deparam com os símbolos, em seus significados e significantes, e como o simples “sentir” pode guardar a própria resposta e a tão esperada transcendência do protagonista. Nesse ponto o personagem de Chico Diaz aparece para explicitar esse ponto, encarnando assim o arquétipo do sábio que não dá a resposta, mas que aponta questões que ajudam o herói a encontrar seu caminho. Porém esse caminho me parece falso, pois ao explicitar o esvaziamento de significado de seus símbolos o filme cai em um paradoxo da sua própria existência, pois ao propor essa tese o filme não te leva a sentir, mas sim a pensar e é esse o ponto no qual penso que o filme se perdeu. 

A Cidade é Uma Só (Adirley Queirós, 2012, Brasil)




Para além de um retrato documental ou ficcional (que lembra os filmes de Franco Taviani) o filme é bem resolvido sobre seu lugar à margem, ou melhor, “no entorno”. E sua justificativa se dá de forma clara e contundente na fala de Dildu, ressignificar o X (ou os X’s), que marcaram de certo modo a exclusão daqueles moradores de Brasília para a periferia. A partir da montagem temos uma enxurrada de efeitos Kuleshoves (por exemplo, com os jingles de Dildu e “a cidade é uma só”), transições poéticas, montagem paralela (que se conectam e se separam de forma dinâmica em função da narrativa) e montagens intelectuais, fazendo esse trabalho constante de ressignificação e caracterizando a forte influência da escola russa. Porém, o que nos filmes de Eisenstein vêm em forma de uma ideologia pesada, aqui vem de forma mais leve, bem brasileira. Filme que não esconde sua politização e sua luta por uma conscientização política, mas nem por isso é pouco generoso com o espectador, forçando qualquer ideologia goela abaixo, pelo contrário, Queirós nos explicita seu lugar justamente para podemos refletir por conta própria. O filme é um ato político que age como seu personagem Dildu, de forma precária e humilde, mas acreditando na sua força. 

O processo do filme, através da sua opacidade, tem uma característica singular em que se percebe o olhar da câmera como mediador do olhar do morador da Ceilandia para a própria realidade e história. A confusão entre realidade e ficção pode ser vista como uma metáfora da própria confusão que é o discurso do Estado (que escondem interesses políticos de uma elite). Através de três pilares temáticos sobre a construção da memória, a especulação imobiliária e a conscientização política (representado respectivamente pelos personagens Nancy, Dildu e Zé Antônio) tem se um retrato contemporaníssimo dessa realidade, que transborda para diversas outras no Brasil. A relação das cidades-satélites com Brasília, ou a sua negação, mostra que a cidade não é uma só. Dildu e seu cunhado não sabem andar em Brasília e se perdem em meio a uma lógica que não é a deles. Porém há possibilidade, através de uma luta por uma conscientização política (mas também da luta por moradia e de uma memória) que ela possa aos poucos se tornar uma só. Essa luta não é só externa (com Dildu tentando ser político, por exemplo), ela também se dá de forma subjetiva, por exemplo, quando Dildu pergunta para o cunhado se joga o papel no carro ou na rua mesmo e acaba por jogar na rua. 

“Os barracos verticalizados sobem sobre concretos de especulação imobiliária: o entorno nos espera”. Com essa frase (a última de todo o filme), além de um tom irônico que também caracteriza-o, mostra um lugar à margem da qual existe uma construção de identidade. Mesmo nesse último momento do filme voltamos a ressignificar todo o filme o que reafirma sua função e mostra a elaboração desse a partir do lettering. 

Em suma, um filme que se coloca no cinema brasileiro contemporâneo diametralmente oposto à “Cidade de Deus”, por exemplo, mesmo retratando realidades à margem. Isso, pois em “A cidade é uma só?” a busca por mudança diz respeito ao todo daquela situação e de uma forma politizada, se reconhecendo como pertencente àquele grupo, e não uma mudança individual como acaba sendo a de Busca Pé. Avesso também no sentido de que não há uma mega produção que vem de fora daquela realidade e que se utiliza dela em pró de uma experiência estética, sensitiva e comercial. Com “A cidade é uma só(?)” as questões que se colocam em “Cidade de Deus” se resolvem ponto a ponto e isso se deve há uma relação extremamente intima da figura do diretor e das escolhas de linguagem com a realidade retratada. 

Meu Nome é Dindi (Safadi, 2007, Brasil)


Marcado por um jogo entre o tempo real e o subjetivo, sempre em relação à personagem principal, Dindi, o desenvolvimento dramático se dá sempre em função do tempo. Junto a esse jogo de tempos, os espaços também são alterados e têm sua função subjetiva, como por exemplo quando aparece um olho desenhado na parede da casa da personagem após o açougueiro dizer que está “de olho” nela. Essa relação entre espaço e tempo com Dindi é o que estrutura e justifica a narrativa. Isso se dá a partir de longos planos sequência, que a princípio foram usados pelo neo-realismo para repensar e reconstruir o tempo no cinema e ajudaram a marcar a ambiguidade e a presença de elementos não narrativos (o que Bazin chamou de não-cinema, pois se abstinha de uma lógica do cinema até então) para mostrar uma visão de realidade. Nesse ponto é interessante pensar que é justamente com essa linguagem geralmente realista que Safadi se mostra diferente, colocando atores conhecidos, usando insistentemente elementos narrativos (como a gag do “pode ficar com o troco” no início) e fazendo “tipificações” dos personagens, sendo basicamente Dindi a única personagem a apresentar algum nível de complexidade. O que aparentemente se propõe como oposição à visão neo-realista italiana parece, pelo contrário, marcar um outro tipo de realismo, que é aquele da subjetividade do personagem.

Dindi é o arquetipo da mulher solitária e indefesa - pelo menos na visão de Marcão, que tem como objetivo de vida alegrá-la e defendê-la. Ela está presa à figura materna que está ligada ao passado (o qual parece sempre melhor do que o presente e o futuro), representado pela quitanda da avó e da mãe. É preciso então que haja um corte masculino no presente, que não veio na infância na figura do pai, mas vem no presente na forma do açougueiro que irá separá-la desse vínculo maternal, tirando também sua pureza infantil de contos de fadas. Nessa proposta inicial já percebemos esses elementos e o filme parece estar com sua rota traçada, mas é com o elemento surpresa que o filme parece trabalhar a sua maior força. A surpresa não vem da narrativa explícita que um primeiro nível de análise traz, mas vem do subtexto, dos elementos narrativos que só um nível de análise mais profundo traz, pois de fato é bem previsível e nada original essa narrativa da vinda do pai desconhecido e da morte do mesmo, causada pelo seu “substituto”. Porém, quando adentramos a subjetividade que o filme nos propõe, percebemos o quão surpreendente e inesperada é essa história, pois de fato os acontecimentos narrativos tradicionais não são relevantes nem sequer para a personagem. O corte, então, não vem do açougueiro e nem sequer de Marcão (que propõe se casar e fugir para o nordeste com ela), mas vem do próprio pai, que porém está morto. Quando o pai aparece, mesmo já morto, há uma ressignificação desse passado tão idealizado por ela, que seu próprio nome lhe induz. Um passado com muito vínculo afetivo, que invade o presente como na cena da praia. Entretanto, para caminhar para o futuro, o palhaço (o que em certo momento do filme o açougueiro diz que não é) aparece como elemento surpresa e faz esse corte. Assim, apenas através da morte ela consegue ressignificar a vida e amadurecer. A cena final mostra - na repetição da mesma cena do inicio - essa imensa diferença da Dindi, que agora é outra pessoa por mais que continue no mesmo lugar.

Para concluir, Meu nome é Dindi é um filme que funciona apesar do roteiro, pois esse nada no raso, como Dindi e Marcão na praia. Sua potência se vê na visão de diretor (e não de roteirista) de Safadi, que propõe com coragem uma linguagem elaborada que por vezes se arrisca para além da sua própria capacidade, o que no caso desse filme deu certo, mas em seu outro longa “O uivo da gaita” (2013) se perde um pouco. Elementos forçados e tipificados no roteiro são usados em prol de um discurso mais elaborado a partir da linguagem cinematográfica, que deram certo também com “Uma estrela para Ioiô”, que apesar de mudo e com uma proposta menos pretensiosa talvez tenha conseguido falar mais.

Sobre minhas criticas


Há alguns anos tenho pensado em escrever criticas sobre filmes e por diversos motivos tenho adiado essa tarefa. Dois motivos principais para isso foram: a falta de conhecimento sobre o cinema e sobre qual formato de critica iria me propor a escrever. Por formato de critica entendo as escolhas de tamanho e estrutura do texto crítico, assim como os aspectos enfocados (tema do filme, uso das técnicas e da tecnologia, atuação, direção, fotografia, arte, som, etc.). Recentemente escutei do crítico Roger Alan Koza a ideia de que o que se tem visto na critica em geral é um egocentrismo onde o filme gira em torno do crítico, mas é preciso haver um movimento copernicano no sentido de perceber que é o filme o centro da crítica. Dessa forma o crítico orbitaria em torno do filme e de seus elementos para elaborar sua crítica e só em um segundo momento se colocaria fora dessa órbita para falar do seu lugar diante daquele filme e diante do cinema.

A princípio pode parecer uma ideia abstrata, em especial a segunda parte, mas é com ela que parto para poder construir um lugar de onde vou falar de cinema. Entendo que é na ação de escrever que posso desvendar a forma e o conteúdo que escrevo. Então peço paciência e curiosidade do meu leitor para desvendar junto a mim meus escritos.

Quanto a falta de conhecimento sobre o cinema, não posso me colocar como alguém que deixou de ter essa falta. De fato ela sempre estará presente. O que posso dizer sobre isso é que ela deixou de ser um motivo que me bloqueava a escrever.

Assim a partir do cinema latino, cinema esse que tem como parte da sua identidade a falta de recursos, o que de certo modo lhe permite exercer maior criatividade dos meios de produção e da própria obra. A partir do cinema que visa explorar a subjetividade humana e suas relações sociais, o que talvez se aproxime do que se acordou chamar na industria cinematográfica do gênero "drama" (sem de modo algum desconsiderar ou minimizar os outros gêneros, apenas como uma tendência das obras que assisto e de onde sinto ter mais possibilidade de aprofundamento e talvez afogamento). E também, a partir da base do cinema (e por conseqüência da crítica), o tripé roteiro, direção e montagem. É a partir desses lugares que meus interesses residem e funcionam como boias ancoradas que servem de apoio para um nadador que se aventura a ir o mais longe que pode no mar.