quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Nada inocentes


Texto escrito para a 2ª edição da Revista Rocinante em setembro de 2016



Agnus Dei (2016), como o próprio título no Brasil sugere (do latim, cordeiro de Deus), é um filme que adentra o universo da religião católica para mostrar um fato real — aparentemente absurdo, do período imediato ao fim da Segunda Grande Guerra — no qual freiras polonesas grávidas recebem ajuda, em segredo, de Mathilde Beaulieu (Lou de Laâge), uma médica francesa.

Mathilde é ateia, comunista e seu único interesse ao se envolver com as irmãs do convento é salvar vidas. Com o tempo, porém, passa a entender a visão de mundo delas e a respeitar suas dificuldades, medos e culpa em relação ao corpo e ao pecado. No primeiro plano há uma apresentação de uma comunidade de mulheres entoando um canto gregoriano. Mathilde de certo modo, apesar das diferenças ideológicas, faz parte dessa irmandade, pois também é mulher. O filme tem êxito ao construir esse sentimento de comunidade, principalmente por apresentar uma diversidade grande de personagens femininas, caracterizadas de modo complexo, independente de uma visão reduzida e tipicamente masculina da mulher.

A inadequação de uma mulher em uma sociedade retrógrada e machista e sua luta para expandir seus direitos e papéis, já tinham sido abordadas no filme anterior da diretora Anne Fontaine, Coco Antes de Chanel (2009). Em Agnus Dei, Mathilde (cuja origem do nome é “guerreira forte”) é essa figura histórica e central para a narrativa. Entretanto, o aprofundamento nas personalidades de algumas das freiras, em especial Maria (Agata Buzek), Mère Abesse (Agata Kulesza) e Irene (Joanna Kulig), faz do filme quase um tratado sobre a diversidade feminina e a desconstrução de estereótipos desse gênero. Irene, por exemplo, mesmo sendo uma personagem coadjuvante, se diferencia das outras freiras por não se opor ao toque em seu corpo. Além disso, no final do filme, ela deixa seu filho e segue no carro com Mathilde para ter uma vida independente. Em contrapartida, a irmã Anna (Katarzyna Dabrowska) segue sua vocação de outra maneira ao acolher seu próprio filho.

Apesar de se enquadrar dentro de uma temática recorrentemente contemplada pela diretora, Agnus Dei parece estar mais voltado para uma classificação a partir dos gêneros cinematográficos em contraste a um sistema de autor. Essa categorização, apesar de nunca ser precisa, é um ponto chave no filme, pois são utilizadas majoritariamente convenções do gênero dramático para narrar a história. Antes mesmo de o filme iniciar, aparecem os habituais dizeres “Esta história é baseada em fatos reais”, já preparando o espectador para aquilo que define o gênero “drama”: filme de temática séria, focado na trama, com retratos realísticos de personagens, cenários e situações da vida e de histórias envolvendo desenvolvimento profundo de personagens e de suas relações.



Aspectos formais reforçam a construção do ambiente dramático. Movimentos de câmera lentos ao longo do filme passam um ar sereno, condizente com a narrativa. Por sua vez, a mise-en-scène é austera e calculada, criando uma aparência pitoresca, o que marca também a fotografia e remete à pintura renascentista, com sua iluminação e perspectiva rigorosa que permite um tratamento realista do espaço e da luz. Outro elemento pertinente é o cenário inóspito de inverno e o uso predominante das cores azul escuro e cinza. Todos esses aspectos estão sintonizados com a trama e acompanham o arco da história até seu clímax.

Na resolução do filme, diante da superação dos obstáculos, esses elementos formais se transformam e se adequam. Assim, o inverno dá espaço à primavera, com luzes mais claras e uma paleta de cor mais viva, aparecendo o azul claro e o verde — cores que estão ligadas à serenidade e à esperança, em oposição aos tons escuros anteriores, ligados mais à tristeza e à morte. Além disso, o convento é alegremente ocupado por crianças e visitantes, ramos estão espalhados por todos os cantos e as freiras usam guirlandas na cabeça. Esse tipo de transformação da forma, para reforçar essa mudança no arco narrativo, é convencional e cheia de clichês, mas é eficiente em alcançar uma resposta emotiva do espectador comum.

O som, por sua vez, se restringe, quase que exclusivamente, ao universo narrativo, o que facilita o mergulho na história e traz ao filme um tom realístico e sério. O uso do silêncio combina com o ambiente do convento e, intercalado com os cantos gregorianos, produz uma dimensão contemplativa. Entretanto, há situações em que o uso do silêncio e de detalhes de sons do ambiente (como o de passos) geram um pequeno clima de suspense e, seguidos de gritos e gemidos, geram um contraste chocante. O único momento em que o som não-diegético é usado é na parte final, sem mais a preocupação de atrair o espectador para dentro da história, na qual uma música começa a tocar quando Mathilde e Irene vão embora de carro e o som permanece ao longo das próximas cenas até o letreiro subir. Além dessa trilha, que enfatiza a superação e felicidade das cenas finais, há o uso de voice over de Maria, como se Mathilde estivesse lendo uma carta dela. Esse recurso geralmente é um “tapa buraco” usado para explicar algo que não ficou claro ou não foi mostrado. Entretanto, nesse caso, o sentimento da cena é reforçado a partir das palavras poéticas e emocionais e o filme é finalizado de modo mais impactante, apesar do uso frequente desse recurso.

O que chama atenção, porém, é como, diante desse clima dramático, elementos de romance e comédia são utilizados ao longo da trama, causando uma quebra e alívio da tensão gerada. Samuel (Vincent Macaigne), o médico francês que acompanha a personagem principal, é um personagem que converge esses elementos, distanciando o espectador da trama central e gerando um alívio da tensão dramática. Os elementos do gênero romance, em especial o do cortejo, são usados na relação das personagens Mathilde e Samuel, mas são secundários na trama e pouco ajudam no seu desenvolvimento (apesar de ajudarem na construção da personalidade de Mathilde, mostrando sua atitude e pensamento independentes da figura masculina). Em relação aos elementos ligados ao gênero da comédia o mesmo ocorre; entretanto, nesse caso, gera ainda um estranhamento, pois não há construções que preparem o espectador para esse tipo de situação. Por exemplo, quando Samuel está no convento para ajudar nos partos ele faz uma piada dizendo que nunca imaginaria que estaria ajudando no parto de freiras polonesas. Porém, por ser, a comédia, reiterada exclusivamente na figura de Samuel, isso acaba sendo aceito, pois caso contrário, se estivesse espalhado em várias personagens ou situações ao longo da narrativa, causaria ainda maior estranhamento e diminuiria o interesse do espectador por não se encaixar com o clima dramático criado.



Para além das temáticas da mulher e da religião, há uma outra mais sutil, ainda que bastante presente e relevante: o do nacionalismo francês. Já no início, quando a irmã Teresa (Eliza Rycembel) vai em busca de ajuda e pede informações para as crianças, ela deixa claro que não pode ser uma ajuda polonesa ou russa. Assim, quando encontra a cruz vermelha francesa, isso coloca a França, que passa a ser representada por Mathilde, em uma posição especial, pois é a única que pode ajudar. A benevolência de Mathilde é indissociável de uma postura supostamente francesa. Não é à toa que os homens franceses parecem elencar virtudes como liderança, compaixão, humor e bondade, enquanto os demais homens (que são militares russos) são cruéis, violentos, autoritários e aparentemente menos instruídos. Além disso, Mathilde tem uma postura moralista e intrometida na relação com as irmãs, influenciando diretamente a direção e as escolhas do convento. Em certo ponto, a irmã Maria diz cumprir um dever de obediência ao reportar o nascimento de um dos bebês; Mathilde, por sua vez, responde: “você tem um dever maior, que é de proteger a vida desta criança”. Claro que essa posição de Mathilde, mais impositiva e moralista, é discreta e passa desapercebida pela maioria, sendo mais evidente sua posição de aceitação, compaixão, abertura e diálogo com essa outra cultura.

Extrapolando os aspectos do filme, parece evidente que há uma preocupação da França em passar esse tipo de imagem do seu país. Não por acaso, esse filme foi escolhido para representar o cinema francês no festival Varilux (no catálogo do festival, a curadoria aponta uma preocupação explícita sobre a construção da imagem da França no Brasil). Nesse sentido, parece que o cinema francês, apesar de se diferenciar em vários sentidos do cinema popular norte-americano, acaba encontrando um ponto em comum: o de exercer uma propaganda nacionalista discreta e sutil, porém muito poderosa, através de seus filmes. Não se pode afirmar que esse tipo de propaganda interfira na construção e produção do filme como acontece muitas vezes nos Estados Unidos desde sua era clássica, mas fica evidente que o governo e os responsáveis franceses acabam exercendo a mesma função nacionalista ao selecionar esse tipo de filme para representá-los diante do mundo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário